26 de maio de 2017

Ro-ti-nei-ra-men-te.
Sis-te-ma-ti-ca-me-nte.
Re-pe-ti-da-men-te.
O dia-a-dia mente.

Abre os olhos,
levanta,
mija, às vezes caga.
Se olha no espelho,
cansaço,
inchaço.
Come porque precisa,
trabalha porque precisa.
Banho é um pequeno prazer.
Exercício físico é ópio gostoso demais.
Esquecer, sublimar, esconder, continuar.
Só assim pode seguir.

Mas, às vezes, a mulher-selvagem grita dentro de mim:
"me deixa sair! me deixa te possuir! me possua também!"
Ela, que sabe que preciso de mais do que isso.
Que preciso de tempo com minhas filhas.
Preciso de tempo comigo.
Preciso de ócio criativo.
Preciso de amigos.

Ela vem tentando sair,
e não sei se tampo todos os orifícios para impedir,
ou se me permito.

Porque sei que, uma vez que ela seja eu
Que sua voz seja tudo que eu possa ouvir
Que eu seja a deusa em mim
Será como uma inundação
Como uma cidade toda submersa
Que existirá apenas na história
E terá de vir um outro lugar
Outro lar
Outro ar

Quanto estou disposta a arriscar?

Ou ela me arrebata,
ou eu mesma me enterro.
Di-a-ri-a-men-te.
Pau-la-ti-na-men-te.
Dis-si-mu-la-da-men-te.

Quanto estou pronta para receber?

Abra os olhos,
desperte,
respire,
agradeça,
sorria,
levante,
caminhe,
se limpe,
se hidrate,
se nutra,
se ame.
Ame os seus,
e os próximos.
Faça por si,
e pelos outros.
Leve luz.
Seja luz.
Tenha tempo para si,
tempo para seus filhos,
seus projetos,
seus sonhos.
Comece onde você está.
Comece já.

Mulher-selvagem,
seja esta minha oração.
Seja minha vida uma oração.
De entrega, confiança, aceitação e gratidão.

E que venha sobre mim o fluxo,
que seja ele capaz de me submergir.
E que brote o novo.

Amém.


Contexto deste poema:
Hoje deu aquela vontade de me procurar no Google para ver se tinha alguma novidade publicada com meu nome. Nada novo. O de sempre. Matéria de jornal, aprovação em concurso, aprovação em vestibular... Mas, dessa vez, ver meu nome ali, primeiro lugar em teatro, UFMG, 2008... Cara, deu um nó aqui no meu peito. Como num flash me vi recebendo a notícia da aprovação - estava na praia, meu professor de teatro me mandou mensagem: "Primeiro lugaaaaar!!!" e eu saí pulando de volta pro mar, sem saber se ria, chorava, gritava... Em seguida, vieram imagens do campus, as aulas, os colegas. A melhor época da minha vida. Foi só um ano e meio, mas foi tão bom! Não me formei. A vida me fez ser mãe antes de concluir o curso e a maternidade me engoliu. Me acomodei, me tornei funcionária pública. Logo eu... que achava que um dia iria morar num motorhome, ou ser mochileira, ou, no mínimo, ser arte-educadora.
E aí, depois de anos sem escrever, foi preciso expurgar.